INTRODUÇÃO
A primeira vista, o tema instrumentalidade no exercício
profissional do assistente social parece ser algo referente ao uso
daqueles instrumentos necessários ao agir profissional, através dos
quais os assistentes sociais podem efetivamente objetivar suas
finalidades em resultados profissionais propriamente ditos. Porém, uma
reflexão mais apurada sobre o termo instrumentalidade nos faria
perceber que o sufixo “idade” tem a ver com a capacidade, qualidade ou
propriedade de algo. Com isso podemos afirmar que a instrumentalidade no exercício profissional refere-se, não ao conjunto de instrumentos e técnicas (neste caso, a instrumentação técnica), mas a uma determinada capacidade ou propriedade constitutiva da profissão, construída e reconstruída no processo sócio-histórico.
O objetivo do texto é o de refletir sobre a instrumentalidade no
exercício profissional do assistente social como uma propriedade ou um
determinado modo de ser que a profissão adquire no interior das relações
sociais, no confronto entre as condições objetivas e subjetivas3 do
exercício profissional. A instrumentalidade, como uma propriedade
sócio-histórica da profissão, por possibilitar o atendimento das
demandas e o alcance de objetivos (profissionais e sociais)
constitui-se numa condição concreta de reconhecimento social da
profissão.
1. A instrumentalidade do trabalho e o Serviço Social
Foi dito que a instrumentalidade é uma propriedade e/ou capacidade que a profissão vai adquirindo na medida em que concretiza objetivos. Ela possibilita que os profissionais objetivem sua intencionalidade em respostas profissionais.
É por meio desta capacidade, adquirida no exercício profissional, que
os assistentes sociais modificam, transformam, alteram as condições
objetivas e subjetivas e as relações interpessoais e sociais existentes num determinado nível da realidade social: no nível do cotidiano.
Ao alterarem o cotidiano profissional e o cotidiano das classes sociais
que demandam a sua intervenção, modificando as condições, os meios e os
instrumentos existentes, e os convertendo em condições, meios e
instrumentos para o alcance dos objetivos profissionais, os assistentes
sociais estão dando instrumentalidade às suas ações. Na medida em
que os profissionais utilizam, criam, adequam às condições existentes,
transformando-as em meios/instrumentos para a objetivação das
intencionalidades, suas ações são portadoras de instrumentalidade.
Deste modo, a instrumentalidade é tanto condição necessária de todo
trabalho social quanto categoria constitutiva, um modo de ser, de todo
trabalho.
Por que dizer que a instrumentalidade é condição de reconhecimento social da profissão?
Todo trabalho social (e seus ramos de especialização — por ex. o Serviço Social) possui instrumentalidade, a qual é construída e reconstruída na trajetória das profissões pelos seus agentes.
Esta condição inerente ao trabalho é dada pelos homens no processo de
atendimento às necessidades materiais (comer, beber, dormir, procriar) e
espirituais (relativas à mente, ao intelecto, ao espírito, à fantasia)
suas e de outros homens. Pelo processo de trabalho os homens transformam
a realidade, transformam-se a si mesmo e aos outros homens. Assim, os
homens reproduzem material e socialmente a própria sociedade. A ação transformadora que é práxis (ver Lessa, 1999 e Barroco, 1999), cujo
modelo privilegiado é o trabalho, tem uma instrumentalidade. Detém a
capacidade de manipulação, de conversão dos objetos em instrumentos que
atendam as necessidades dos homens e de transformação da natureza em
produtos úteis (e em decorrência, a transformação da sociedade).
Mas a práxis necessita de muitas outras capacidades/propriedades além da
própria instrumentalidade.
Neste âmbito, o processo de trabalho é compreendido como um conjunto de atividades prático-reflexivas
voltadas para o alcance de finalidades, as quais dependem da
existência, da adequação e da criação dos meios e das condições
objetivas e subjetivas. Os homens utilizam ou transformam os
meios e as condições sob as quais o trabalho se realiza modificando-os,
adaptando-os e utilizando-os em seu próprio benefício, para o alcance de
suas finalidades. Este processo implica, pois, em manipulação, domínio e
controle de uma matéria natural que resulte na sua transformação. Este movimento de transformar a natureza é trabalho. Mas ao transformar a natureza, os homens transformam-se a si próprios. Produzem um mundo material e espiritual (a consciência, a linguagem, os hábitos, os costumes, os modos de operar, os valores morais, éticos, civilizatórios), necessários à realização da práxis.
Se
trabalho é relação homem-natureza, e práxis é o conjunto das formas de
objetivação dos homens (incluindo o próprio trabalho) num e noutro os
homens realizam a sua teleologia. Toda postura teleológica encerra instrumentalidade,
o que possibilita ao homem manipular e modificar as coisas a fim de
atribuir-lhes propriedades verdadeiramente humanas, no intuito de
converterem-nas em instrumentos/meios para o alcance de suas
finalidades. Converter os objetos naturais em coisas úteis, torná-los instrumentos é um processo teleológico,
o qual necessita de um conhecimento correto das propriedades dos
objetos. Nisso reside o caráter emancipatório do trabalho. Entretanto, tal conhecimento seria insuficiente se a ele não se acrescentasse a operatividade propriamente dita, a capacidade de os homens alterarem o estado atual de tais objetos(Guerra, 2000).
Qual a relação entre postura teleológica e instrumentalidade?
No trabalho o homem desenvolve capacidades, que passam a mediar
sua relação com outros homens. Desenvolve também mediações, tais como a
consciência, a linguagem, o intercâmbio, o conhecimento, mediações estas
em nível da reprodução do ser social como ser histórico, e, portanto,
postas pela práxis. Isso porque, o desenvolvimento do trabalho exige o desenvolvimento das próprias relações sociais e o processo de reprodução social, como
um todo, requer mediações de complexos sociais tais como: a ideologia,
a teoria, a filosofia, a política, a arte, o direito, o Estado, a
racionalidade, a ciência e a técnica (Lessa, 1999; Guerra, 2000).
Tais complexos sociais (que Lukács chama de mediações de “segunda
ordem”, já que as de primeira ordem referem-se ao trabalho) tem como
objetivo proporcionar uma dada organização das relações entre os homens e
localiza-se no âmbito da reprodução social.
O que ocorre com a instrumentalidade com a qual os homens controlam a natureza e convertem os objetos naturais em meios para o alcance de suas finalidades, é que ela é
transposta para as relações dos homens entre si, interferindo em nível
da reprodução social. Mas isso só ocorre em condições sócio-históricas
determinadas. Nestas, os homens tornam-se meios/instrumentos de
outros homens. O exemplo mais desenvolvido de conversão dos homens em
meios para a realização de fins de outros homens é o da compra e venda
da força de trabalho como mercadoria, de modo que a
instrumentalidade, convertida em instrumentalização das pessoas,4 passa a
ser condição de existência e permanência da própria ordem burguesa, via
instituições e organizações sociais criadas com este objetivo.
Pelas suas características, o processo produtivo capitalista
detém a propriedade de converter as instituições e práticas sociais em
instrumentos/meios de reprodução do capital. Isso se dá por meio de
profundas e substantivas transformações societárias, as quais não
poderão ser tratadas neste texto. Cabe-nos apenas sinalizar que num
determinado tipo de sociedade, a do capital, “o trabalhador deixa
de lado suas necessidades enquanto pessoa humana e se converte em
instrumentos para a execução das necessidades de outrem” (Lessa, 1999). (Sobre a reificação das relações sociais no capitalismo maduro ver Netto, 1981).
Em que condições sócio-históricas a instrumentalidade como condição necessária da relação homem-natureza se converte em instrumentalização das pessoas?
Serviço Social e instrumentalidade
Como decorrência das formas lógicas de reprodução da ordem
burguesa e como modalidade sócio-históricas de tratamento da chamada
questão social, o Estado passa a desenvolver um conjunto de medidas
econômicas e sociais, demandando ramos de especialização e instituições
que lhe sirvam de instrumento para o alcance dos fins econômicos e
políticos que representa, em conjunturas sócio-históricas diversas. A
questão social esta sendo entendida como “expressão do processo de
formação e desenvolvimento da classe operária e do seu ingresso no
cenário da sociedade, exigindo seu reconhecimento enquanto classe por
parte do empresariado e do Estado” (Iamamoto e Carvalho, 1982: 77; Ver
também Netto, 1992 e, especialmente, 2001).
É no estágio monopolista do capitalismo, dadas às características que lhe são peculiares, que a questão social vai se tornando objeto de intervenção sistemática e contínua do Estado. Com
isso, instaura-se um espaço determinado na divisão social e técnica
do trabalho para o Serviço Social (bem como para outras profissões).
A utilidade social de uma profissão advém das necessidade sociais.
Numa ordem social constituída de duas classes fundamentais (que se
dividem em camadas ou segmentos) tais necessidades, vinculadas ao
capital e/ou ao trabalho, são não apenas diferentes mas antagônicas. A
utilidade social da profissão está em responder às necessidades das
classes sociais, que se transformam, por meio de muitas mediações, em
demandas para a profissão. Estas são respostas qualificadas e
institucionalizadas, para o que, além de uma formação social
especializada, devem ter seu significado social reconhecido pelas
classes sociais fundamentais (capitalistas e trabalhadores). Considerando
que o espaço sócio-ocupacional de qualquer profissão, neste caso do
Serviço Social, é criado pela existência de tais necessidade sociais
e que historicamente a profissão adquire este espaço quando o Estado
passa a interferir sistematicamente nas refrações da questão social,
institucionalmente transformada em questões sociais (Netto,
1992), através de uma determinada modalidade histórica de enfrentamento
das mesmas: as políticas sociais, pode-se conceber que as políticas e os
serviço sociais constituem-se nos espaços sócio-ocupacionais para os
assistentes sociais.
As políticas sociais, além de sua dimensão econômico-política (como
mecanismo de reprodução da força de trabalho e como resultado das lutas
de classes) constituem-se também num conjunto de procedimentos
técnico-operativos, cuja componente instrumental põe a necessidade de
profissionais que atuem em dois campos distintos: o de sua formulação e o
de sua implementação. É neste último, no âmbito da sua
implementação, que as políticas sociais fundam um mercado de trabalho
para os assistentes sociais. Com a complexificação da questão
social e seu tratamento por parte do Estado, fragmentando-a e
recortando-a em questões sociais a serem atendidas pelas políticas
sociais, instituiu-se um espaço na divisão sócio-técnica do trabalho
para um profissional que atuasse na fase terminal da ação executiva das
políticas sociais, instância em que a população vulnerabilizada recebe e
requisita direta e imediatamente respostas fragmentadas através das
políticas sociais setoriais. É nesse sentido que as políticas
sociais contribuem para a produção e reprodução material e ideológica da
força de trabalho (melhor dizendo, da subjetividade do trabalhador como
força de trabalho) e para a reprodução ampliada do capital.
Como
resultado destas determinações no processo de constituição da
profissão, a intencionalidade dos assistentes sociais passa a ser
mediada pela própria lógica da institucionalização, pela dinâmica da
instauração da profissão e pelas estruturas em que a profissão se
insere, as quais, em muitos casos, submetem o profissional, melhor
dizendo, os assistente sociais “passam a desempenhar papéis que lhes
são alocados por organismos e instâncias (...)” próprios da ordem burguesa no estágio monopolista (Netto, 1992: 68), os quais são portadores da lógica do mercado. Assim, o assistente social adquire a condição de trabalhador assalariado com todos os condicionamentos que disso decorre.
Por
isso é importante, na reflexão do significado sócio-histórico da
instrumentalidade como condição de possibilidade do exercício
profissional, resgatar a natureza e a configuração das políticas sociais
que, como espaços de intervenção profissional, atribuem determinadas
formas, conteúdos e dinâmicas ao exercício profissional. A este respeito, considerando a natureza (compensatória e residual) e o modo de se expressar das políticas sociais (como questão de natureza técnica, fragmentada, focalista, abstraída de conteúdos econômico-políticos) estas obedecem e produzem uma dinâmica que se reflete no exercício profissional através de dois movimentos:
1)
Interditam aos profissionais a concreta apreensão das políticas sociais
como totalidade, síntese da articulação de diversas esferas e
determinações (econômica, cultural, social, política, psicológica), o que os limita a uma intervenção microscópica, nos fragmentos, nas refrações, nas singularidades;
2) Exigem dos profissionais a adoção de procedimentos instrumentais, de
manipulação de variáveis, de resolução pontual e imediata. (ver Netto, 1992 e Guerra, 1995).
Quais os vínculos entre as políticas sociais e o Serviço Social?
Neste contexto, assim entendida a utilidade social da profissão, vinculada às políticas sociais, a instrumentalidade do Serviço Social pode ser pensada como uma condição sócio-histórica da profissão em três níveis:
1.
da instrumentalidade do Serviço Social face ao projeto burguês, o que
significa a capacidade que a profissão porta (dado ao caráter reformista
e integrador das políticas sociais) de ser convertida em instrumento,
em meio de manutenção da ordem, a serviço do projeto reformista da
burguesia. Neste caso, dentro do projeto burguês de reformar conservando, o Estado lança mão de uma estratégia histórica de controle da
ordem social, qual seja, as políticas sociais, e requisita um
profissional para atuar no âmbito da sua operacionalização: os
assistentes sociais. Este aspecto está vinculado a uma das funções que a
ordem burguesa atribui à profissão: reproduzir as relações capitalistas
de produção.
2. da instrumentalidade das
respostas profissionais, no que se refere à sua peculiaridade
operatória, ao aspecto instrumental-operativo das respostas
profissionais frente às demandas das classes, aspecto este que permite o
reconhecimento social da profissão, dado que, por meio dele o Serviço
Social pode responder às necessidades sociais que se traduzem (por meio
de muitas mediações) em demandas (antagônicas) advindas do capital e do
trabalho. Isto porque as diversas modalidades de intervenção profissional tem um caráter instrumental, dado pelas requisições que tanto as classes hegemônicas quanto as classes populares lhe fazem. Nesta condição, no que se refere às respostas profissionais, a instrumentalidade do exercício profissional expressa-se:
1.
nas funções que lhe são requisitadas: executar, operacionalizar,
implementar políticas sociais; a partir de pactos políticos em torno dos
salários e dos empregos (do qual o fordismo é exemplar) melhor dizendo,
no âmbito da reprodução da força de trabalho
2.
no horizonte do exercício profissional: no cotidiano das classes
vulnerabilizadas, em termos de modificar empiricamente as variáveis do
contexto social e de intervir nas condições objetivas e subjetivas de
vida dos sujeitos (visando a mudança de valores, hábitos, atitudes,
comportamento de indivíduos e grupos). É no cotidiano — tanto dos
usuários dos serviços quanto dos profissionais — no qual o assistente
social exerce sua instrumentalidade, o local em que imperam as demandas
imediatas, e conseqüentemente, as respostas aos aspectos imediatos, que
se referem à singularidade do eu, à repetição, à padronização. O
cotidiano é o lugar onde a reprodução social se realiza através da
reprodução dos indivíduos (Netto, 1987), por isso um espaço ineliminável
e insuprimível. As singularidades, os imediatismos que caracterizam
o cotidiano, que implicam na ausência de mediação, só podem ser
enfrentados pela apreensão das mediações objetivas e subjetivas (tais
como valores éticos, morais e civilizatórios, princípios e referências
teóricas, práticas e políticas) que se colocam na realidade da
intervenção profissional.
2.3. nas modalidades de
intervenção que lhe são exigidas pelas demandas das classes sociais.
Estas intervenções, em geral, são em nível do imediato, de natureza
manipulatória, segmentadas e desconectadas das suas determinações
estruturais, apreendidas nas suas manifestações emergentes, de caráter
microscópico.
Nestes três casos (2.1, 2.2,
2.3) são respostas manipulatórias, fragmentadas, imediatistas, isoladas,
individuais, tratadas nas suas expressões/aparências (e não nas
determinações fundantes), cujo critério é a promoção de uma alteração no
contexto empírico, nos processos segmentados e superficiais da
realidade social, cujo parâmetro de competência é a eficácia segundo a
racionalidade burguesa5. São operações realizadas por ações
instrumentais6, são respostas operativo-instrumentais, nas quais impera
uma relação direta entre pensamento e ação e onde os meios (valores) se
subsumem aos fins. Abstraídas de mediações subjetivas e universalizantes
(referenciais teóricos, éticos, políticos, sócioprofissionais, tais
como os valores coletivos) estas respostas tendem a percepcionar as
situações sociais como problemáticas individuais (por exemplo: o caso
individual, a situação existencial problematizada, as problemáticas de
ordem moral e/ou pessoal, as patologias individuais, etc.).
Quais os níveis em que tem se manifestado a instrumentalidade do Serviço Social?
Se muitas das requisições da profissão são de ordem instrumental
(em nível de responder às demandas — contraditórias— do capital e do
trabalho e em nível de operar modificações imediatas no contexto
empírico), exigindo respostas instrumentais, o exercício profissional
não se restringe à elas. Com isso queremos afirmar que reconhecer e atender
às requisições técnico-instrumentais da profissão não significa ser
funcional à manutenção da ordem ou ao projeto burguês. Isto pode
vir a ocorrer quando se reduz a intervenção profissional à sua dimensão
instrumental. Esta é necessária para garantir a eficácia e eficiência
operatória da profissão. Porém, reduzir o fazer profissional à sua
dimensão técnico-instrumental significa tornar o Serviço Social meio
para o alcance de qualquer finalidade. Significa também limitar as
demandas profissionais às exigências do mercado de trabalho. É também equivocado pensar que para realizá-las o profissional possa prescindir de referências teóricas e ético-políticas.
Se as demandas com as quais trabalhamos são totalidades saturadas de determinações (econômicas, políticas, culturais, ideológicas) então
elas exigem mais do que ações imediatas, instrumentais, manipulatórias.
Elas implicam intervenções que emanem de escolhas, que passem pelos
condutos da razão crítica e da vontade dos sujeitos, que se inscrevam no
campo dos valores universais (éticos, morais e políticos). Mais
ainda, ações que estejam conectadas a projetos profissionais aos quais
subjazem referenciais teórico-metodológicos e princípios
ético-políticos.
Assim, na realização das
requisições que lhe são postas, a profissão necessita da interlocução
com conhecimentos oriundos de disciplinas especializadas. O acervo
teórico e metodológico que lhe serve de referencial é extraído das
ciências humanas e sociais (conhecimentos extraídos das áreas de:
Administração, Ciência Política, Sociologia, Psicologia, Economia etc.).
Tais conhecimentos têm sido incorporados pela profissão e
particularizados na análise dos seus objetos de intervenção. Mas a
profissão também tem produzido, através da pesquisa e da sua
intervenção, conhecimentos sobre as dimensões constitutivas da questão
social, sobre as estratégias capazes de orientar e instrumentalizar a
ação profissional (dentre outros temas) e os tem partilhado com
profissionais de diversas áreas.
Foi dito linhas atrás que há dimensões da instrumentalidade do exercício profissional e falamos de duas delas. Mas a terceira condição da instrumentalidade é a de ser uma mediação. Se
é verdade que a Instrumentalidade insere-se no espaço do singular, do
cotidiano, do imediato, também o é que ela, ao ser considerada como uma
particularidade da profissão, dada por condições objetivas e subjetivas,
e como tal sócio-históricas, pode ser concebida como campo de mediação e
instância de passagem. Diferente disso, seria tomar a
instrumentalidade apenas como singularidade, e como tal, um fim em si
mesma, de modo que estaríamos desconhecendo suas possibilidades como
particularidade. No cotidiano, como o espaço da instrumentalidade,
imperam demandas de natureza instrumental. Nele, a relação meios e fins
rompe-se e o que importa é que os indivíduos acionem os elementos
necessários para alcançarem seus fins. Mas pelas próprias
características do cotidiano, os homens não se perguntam pelos fins: a
quem servem? que forças reforça? qual o projeto de sociedade que está na
sua base? Tampouco pelos valores que estão implicados nas ações
desencadeadas para responder imediata e instrumentalmente ao cotidiano.
Por que o cotidiano é o espaço para a realização das ações instrumentais?
A instrumentalidade do exercício profissional como mediação
Tratar-se-á aqui da instrumentalidade como uma mediação que
permite a passagem das ações meramente instrumentais para o exercício
profissional critico e competente. Como mediação, a
instrumentalidade permite também o movimento contrário: que as
referências teóricas, explicativas da lógica e da dinâmica da sociedade,
possam ser remetidas à compreensão das particularidades do exercício
profissional e das singularidades do cotidiano. Aqui, a
instrumentalidade sendo uma particularidade e como tal, campo de
mediação, é o espaço no qual a cultura profissional se movimenta. Da
cultura profissional os assistentes sociais recolhem e na
instrumentalidade constróem os indicativos teórico-práticos de
intervenção imediata, o chamado instrumental-técnico ou as ditas metodologias de ação.
Reconhecer
a instrumentalidade como mediação significa tomar o Serviço Social como
totalidade constituída de múltiplas dimensões: técnico-instrumental,
teórico-intelectual, ético-política e formativa (Guerra, 1997), e a
instrumentalidade como uma particularidade e como tal, campo de
mediações que porta a capacidade tanto de articular estas dimensões
quanto de ser o conduto pelo qual as mesmas traduzem-se em respostas
profissionais. No primeiro caso a instrumentalidade articula as dimensões da profissão e
é a síntese das mesmas. No segundo, ela possibilita a passagem dos
referenciais técnicos, teóricos, valorativos e políticos e sua
concretização, de modo que estes se traduzam em ações profissionais, em
estratégias políticas, em instrumentos técnico-operativos. Em outros
termos, ela permite que os sujeitos, face a sua intencionalidade,
invistam na criação e articulação dos meios e instrumentos necessários à
consecução das suas finalidades profissionais.
Afirmamos que como particularidade a instrumentalidade é campo de mediação, dentre elas, da cultura profissional. No
exercício profissional o assistente social lança mão do acervo
ídeo-cultural disponível nas ciências sociais ou na tradição marxista e o
adapta aos objetivos profissionais. Constrói um certo modo de
fazer que lhe é próprio e pelo qual a profissão torna-se reconhecida
socialmente. Produz elementos novos que passam a fazer parte de um
acervo cultural (re) construído pelo profissional e que se compõe de
objetos, objetivos, princípios, valores, finalidades, orientações
políticas, referencial técnico, teórico-metodológico, ídeo-cultural e
estratégico, perfis de profissional, modos de operar, tipos de
respostas; projetos profissionais e societários, racionalidades que se
confrontam e direção social hegemônica, etc. Deste modo, a cultura
profissional, como construção coletiva e base na qual a categoria se
referencia, é também ela uma mediação entre as matrizes clássicas do
conhecimentos — suas programáticas de intervenção e os projetos
societários que os norteiam — e as particularidades que a profissão adquire na divisão social e técnica do trabalho.
Ela abarca forças, direções e projetos diferentes e/ou
divergentes/antagônicos e condiciona o exercício profissional. Na
definição das finalidades e na escolha dos meios e instrumentos mais
adequados ao alcance das mesmas, os homens estão exercendo sua liberdade
(concebida historicamente como escolha racional por alternativas
concreta dentro dos limites possíveis). Tais finalidades (ainda que de
caráter individual) estão inscritas num quadro valorativo e somente
podem ser pensadas no interior deste quadro, entendido como acervo
cultural do qual o profissional dispõe e lhe orienta as escolhas
técnicas, teóricas e ético-políticas. Tais escolhas implicam projetar
tanto os resultados e meios de realização quanto as conseqüências. Isso
porque, no âmbito profissional, não existem ações pessoais mas ações
publicas e sociais de responsabilidade do indivíduo como profissional e
da categoria profissional como um todo. Para tanto, há que se ter conhecimento dos objetos, dos meios/instrumentos e dos resultados possíveis.
Com isso pode-se perceber que a cultura profissional incorpora conteúdos teórico-críticos projetivos. Pela
mediação da cultura profissional o assistente social pode negar a ação
puramente instrumental, imediata, espontânea e reelaborá-la em nível de
respostas sócioprofissionais. Na elaboração de respostas
mais qualificadas, na construção de novas legitimidades, a razão
instrumental7 não dá conta. Há que se investir numa instrumentalidade
inspirada pela razão dialética8.
O que significa reconhecer a instrumentalidade do exercício profissional como mediação?
CONCLUSÃO - Serviço Social e Razão dialética
Ainda que surgindo no universo das práticas reformistas
integradoras que visam controlar e adaptar comportamentos, moldar
subjetividades e formas de sociabilidade necessárias à reprodução da
ordem burguesa, de um lado, e como decorrência da ampliação das funções
democráticas do Estado, fruto das lutas de classes, de outro, o
Serviço Social, entretecido pelos interesses em confronto, vai ampliando
as suas funções até colocar-se no âmbito da defesa da universalidade de
acesso a bens e serviços, dos direitos sociais e humanos, das políticas
públicas e da democracia. Pela instrumentalidade da profissão, pela
condição e capacidade de o Serviço Social operar transformações,
alterações nos objetos e nas condições (meios e instrumentos), visando
alcançar seus objetivos, vão passando elementos progressistas,
emancipatórios, próprios da razão dialética. Pressionando a
profissão, tais forças progressistas (internas e externas) permitem que a
profissão reveja seus fundamentos e suas legitimidades, questione sua
funcionalidade e instrumentalidade, o que permite uma ampliação das
bases sobre as quais sua instrumentalidade se desenvolve.
Ao
desprender da base histórica pela qual a profissão surge, o Serviço
Social pode qualificar-se para novas competências, buscar novas
legitimidades, indo além da mera requisição instrumental-operativa do
mercado de trabalho. Este enriquecimento da instrumentalidade do
exercício profissional resulta num profissional que, sem prejuízo da
sua instrumentalidade no atendimento das demandas possa antecipá-las,
que habilitado no manejo do instrumental técnico saiba colocá-lo no seu
devido lugar (qual seja, no interior do projeto profissional) e, ainda,
que reconhecendo a dimensão política da profissão, inspirado pela razão
dialética, invista na construção de alternativas que sejam instrumentais
à superação da ordem social do capital.
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Retirado: http://www.ebah.com.br/content/ABAAAAmAMAE/instrumentalidade-servico-social